Vitor Henrique Paro
1 Os limites
do sistema eletivo
Embora
algumas experiências localizadas remontem à década de 60, a reivindicação da
escolha de diretores escolares por meio de processo eletivo, em âmbito
nacional, é fenômeno que se inicia nos começos da década de 80, no contexto da
redemocratização política do país. Em vários estados, iniciam-se processos de
eleição de diretores escolares na primeira metade dessa década, com a ascensão
dos primeiros governadores estaduais eleitos após a ditadura iniciada em 1964.
Em 1989, vários estados inscrevem em suas constituições a obrigatoriedade da
eleição como critério de escolha dos diretores nas escolas públicas.
Entretanto, já ao final da década de 80 e início da de 90, verifica-se certo
refluxo das eleições em alguns estados, produto da ação de governos pouco comprometidos
com a democracia, que entram com Ações Diretas de Inconstitucionalidade contra
as eleições, com a clara intenção de proteger seus interesses
político-partidários identificados com práticas clientelistas.
Apesar
disso, porém, a adoção de processo eletivo como critério para escolha de
diretores expande-se em todo o país, fazendo-se realidade em grande número de
municípios e em estados onde antes vigorava a nomeação política. Em alguns
sistemas que já haviam experimentado a escolha democrática dos diretores, como
o Estado do Paraná e o Distrito Federal, os governadores eleitos em 1994 voltam
a introduzir a eleição direta, em cumprimento a suas plataformas de governos ou
a promessas feitas em suas campanhas eleitorais. O fato, aliás, de os políticos
passarem a inscrever em suas plataformas eleitorais o compromisso com a eleição
de diretores indica sua sensibilidade para algo que passou a fazer parte dos
desejos de parcelas da população envolvidas com a gestão da escola pública.
Este parece ser mais um resultado positivo do movimento em torno da eleição de
diretores que se verificou a partir de inícios da década de 80: o de
inscrever-se no imaginário dessas parcelas da população a escolha democrática
de diretores escolares como um valor positivo e como um direito a ser
reivindicado.
Mas,
como toda inovação, a perspectiva de introdução da via eletiva para escolha de
diretores escolares provoca grande número de expectativas nos sujeitos
envolvidos, muitas delas impossíveis de serem realizadas. Por isso, é importante
ter presente algumas limitações apontadas pela prática. A seguir comentarei
como se manifestaram, nas experiências examinadas, os limites das eleições de
diretores com respeito a algumas expectativas que se tinha a seu respeito.
Um
dos principais argumentos para a implantação das eleições de diretores
fundamenta-se na crença na capacidade do sistema eletivo de neutralizar as
práticas tradicionalistas calcadas no clientelismo e no favorecimento pessoal,
que inibem as posturas universalistas reforçadoras da cidadania. A esse
respeito, parece que as eleições tiveram um importante papel na diminuição ou
eliminação, nos sistemas em que foram adotadas, da sistemática influência dos
agentes políticos (vereadores, deputados, prefeitos, cabos eleitorais etc.) na
nomeação do diretor. Mas, isso não significa que o clientelismo tenha deixado
de exercer suas influências na escola. Por um lado, em alguns sistemas
continuaram a existir brechas para a penetração da influência do agente
político na nomeação do diretor; por outro, as práticas clientelistas passaram
a fazer parte também do interior da própria escola, quer no processo de eleição
do diretor, quer durante o exercício de seu mandato.
Certa
permanência da influência político-partidária verificou-se especialmente nos
sistemas em que a eleição se deu por lista tríplice, com a escolha definitiva
de um dos três nomes ficando por conta do poder executivo. No Estado do Paraná,
nas eleições de 1983, Zabot (1984, p. 89) refere-se às "inúmeras
iniciativas dos grupos de pressão interessados na nomeação de determinados
candidatos." Também no Município de Goiânia, Canesin (1993, p. 127-128)
reporta as "marcas profundas no clientelismo" presente nas primeiras
eleições, práticas também referidas em Dourado (1990, p. 123).
Mas
não só nos locais em que havia a escolha por lista tríplice esteve presente a
pressão clientelista. Especialmente nas primeiras eleições, os agentes
políticos não desistem de tentar fazer valerem seus interesses clientelistas. É
o caso, por exemplo, do Estado de Minas Gerais onde, apesar da existência de
regras bem definidas e divulgadas, ainda houve assédio de políticos para
burlá-las. (Mello & Silva, 1994, p. 32)
Uma
peculiar forma de intervir movido por interesses clientelistas é a praticada
por certos agentes políticos que, alijados, pelo sistema eletivo, de sua
anterior oportunidade de influir diretamente na nomeação dos dirigentes
escolares, prevalecem-se de sua experiência política para influenciar no
próprio processo de eleição que se dá na unidade escolar. Calaça, em estudo
realizado na rede municipal de ensino de Goiânia, dá conta de práticas desse
tipo na eleição de 1984, nesse município, ao informar que "alguns
candidatos patrocinados por vereadores distribuíram santinhos, calendários e
camisetas e prometeram favores em troca de votos." (Calaça, 1993, p. 88)
Também
no interior da própria unidade escolar, segundo reclamações do pessoal que aí
trabalha, podem ser identificadas ocorrências de práticas mais tradicionalistas
que se supunham superadas com a eleição. Um dos professores entrevistados por
Castro et al., no Estado do Rio Grande do Sul, declara que continua a haver as
"panelinhas" existentes antes das eleições. (Castro et al., 1991, p.
98) Por seu turno, Holmesland et al. (1989, p. 128) também apresentam
depoimentos de diretores que evidenciam uma concepção clientelista do pessoal
escolar, que exige uma contrapartida pessoal ao apoio dado na eleição.
O
fato, entretanto, de a incipiente prática política introduzida pelas eleições
de diretores não ter sido capaz de eliminar por completo essas expectativas e
comportamentos clientelistas não pode levar a que se impute às eleições as
causas desses males que nada mais são, na verdade, do que remanescentes de uma
cultura tradicionalista que só a prática da democracia e o exercício autônomo
da cidadania poderá superar.
Outra
expectativa que muitas pessoas tinham com relação à eleição era a de que esta
conseguiria eliminar o autoritarismo existente na escola e a falta de
participação de professores, alunos, funcionários e pais nas decisões. A
suposição por trás dessa expectativa era a de que a falta de participação e o
autoritarismo existentes na escola se deviam, em grande parte ou
exclusivamente, ao fato de o diretor, não tendo compromissos com o pessoal
escolar ou com os usuários da escola, por não ter sido escolhido por estes,
tendia a articular-se apenas com os interesses do Estado, voltando as costas
para a unidade escolar e sua comunidade. Com a eleição, esperavam que a escola
se encaminhasse rapidamente para uma convivência democrática e para a maior
participação de todos em sua gestão. Todavia, as experiências mostraram que
havia mais otimismo do que realismo nessas previsões. Numa apreciação dessa
questão no Distrito Federal, após as eleições, no período de 1985 a 1988, Couto
(1988, p. 145) constata a falta de avanços na participação dos vários segmentos
escolares na escola de modo a implicar a distribuição do poder. Em Vitória,
segundo técnicas da Secretaria de Educação, apesar dos avanços, ainda há muita
reclamação a respeito do diretivismo e do autoritarismo do diretor. Em Goiânia,
Dourado (1990, p. 136) também constata a resistência de professores e diretores
em aceitar as tentativas de se instalarem Grêmios Estudantis e "outros
canais de participação na escola."
Obviamente,
as pessoas que pensavam que, com as eleições, o diretor mudaria seu
comportamento, de forma radical e imediata, frustraram-se ao perceber que muito
das características do chefe monocrático que detém a autoridade máxima na
escola persistiu mesmo com a eleição. Mas, o que isso reafirma é que as causas
do autoritarismo existente nas unidades escolares não advêm exclusivamente do
provimento do diretor pela via da nomeação política. Antes, é preciso
considerar que tal autoritarismo é resultado da conjunção de uma série de
determinantes internos e externos à unidade escolar que se sintetizam na forma
como se estrutura a própria escola e no tipo de relações que aí têm lugar. Por
isso, mais uma vez é preciso ter presente que, também neste caso, não se trata
em absoluto de culpar a eleição, mas de reconhecer que ela tem limites que só
podem ser superados quando se conjuguem, ao processo eletivo, outras medidas
que toquem na própria organização do trabalho e na distribuição da autoridade e
do poder na escola.
Outra
circunstância que evidencia os limites da eleição de diretores é que ela não
está imune ao corporativismo por parte dos grupos que interagem na escola. A
esse respeito, o maior número de reclamações contidas em relatos de autoridades
das secretarias de educação e de pessoas envolvidas nas mudanças refere-se à
atitude de professores que, pouco afeitos às regras da democracia que supõem
que o eleito, embora escolhido pela maioria, deve governar visando o bem de
todos, procuram tirar proveito da situação, buscando favorecimento ao grupo dos
docentes em troca de seu apoio a determinado candidato.
Finalmente,
uma importante característica das eleições é que, como todo processo de
democracia, a participação e o envolvimento das pessoas enquanto sujeitos na
condução das ações é apenas uma possibilidade, não uma garantia. Especialmente
em sociedades com fortes marcas tradicionalistas, sem uma cultura desenvolvida
de participação social, é muito difícil conseguir-se que os indivíduos não
deleguem a outros aquilo que faz parte de sua obrigação enquanto sujeito
partícipe da ação coletiva. No caso da escola pública, as reclamações,
especialmente de diretores, dão conta de que a eleição do dirigente acaba, em
grande medida, significando não a escolha de um líder para a coordenação do
esforço humano coletivo na escola, mas muito mais uma oportunidade de jogar
sobre os ombros do diretor toda a responsabilidade que envolve a prática
escolar. Dourado (1990, p. 139) refere-se a esse tipo de situação como a uma
redução do processo democrático a "mera delegação de poderes" e
Holmesland et al. (1989, p. 138) consideram que "o diretor de escola
pública, mesmo eleito, é um indivíduo que tende a sentir-se desacompanhado,
desprotegido, solitário."
Não
há dúvida de que, se o problema é a falta de tradição democrática, é com a
insistência em mecanismos de participação e de exercício da democracia que se
conseguirá maior envolvimento de todos em suas responsabilidades. Mas, diante
da associação que muitos fazem entre o direito de votar e a omissão em
co-participar das responsabilidades do eleito, nunca é demais meditar sobre as
palavras de Agnes Heller sobre a questão da relação entre liberdade e dever:
"Toda pessoa tem a
liberdade de não reconhecer nenhum valor moral. Mas, como já disse, isso não a
ajuda a ser livre. Hegel tinha razão quando distinguiu entre liberdade e
arbítrio. A liberdade é sempre liberdade para algo, e não apenas liberdade de
algo. Se interpretarmos a liberdade apenas como o fato de sermos livres de
alguma coisa, encontramo-nos no estado de arbítrio, definimo-nos de modo
negativo.
A liberdade é uma relação e, como tal, deve ser
continuamente ampliada.
O próprio conceito de liberdade contém o conceito de
dever, o conceito de regra, de reconhecimento, de intervenção recíproca. Com
efeito, ninguém pode ser livre se, em volta dele, há outros que não o
são." (Heller, 1982, p. 155; grifos no original)
2 A nova situação do diretor
Passar
de uma situação clientelista, onde o que vale é o critério político-partidário,
para uma situação de escolha democrática, legitimado pela vontade dos sujeitos
envolvidos na situação escolar, faria supor, para muitos, mudanças
significativas no perfil do diretor da escola pública básica. Entretanto, se
assim aconteceu, isto não foi percebido de modo inequívoco pelos que
compartilham de alguma forma o espaço escolar. O processo de escolha é apenas
um dos múltiplos determinantes a influir na maneira de gerir a escola e, em
especial, no modo de agir do próprio diretor. Além disso, se, por um lado, a
eleição pressupõe mudanças de condutas do diretor (movidas, especialmente, pelo
compromisso que a eleição provoca com os eleitores), por outro, os inúmeros
problemas da gestão escolar, que permanecem, contribuem para dificultar a
percepção das mudanças ocorridas. Isto sem falar em problemas novos que surgem
em substituição a antigos. Um desses novos problemas é referido por Castro et
al. quando apresentam as dificuldades do novo diretor para ter acesso aos
órgãos centrais do sistema escolar:
"Quando o sistema era clientelístico, o diretor
era escolhido com base em critérios políticos e tinha uma forma de
relacionamento baseada nesta indicação política. Com a eleição de diretores,
isto se modifica e o velho sistema entra em desuso, mas uma nova forma de
relacionamento está em processo de formação e assim o diretor eleito tem muito
menos acesso às fontes de poder - à Secretaria de Obras do Estado e aos
contactos políticos tradicionais. O diretor eleito enfrenta, além de todas as dificuldades
inerentes à função, a de construir uma nova forma de relacionamento com os
órgãos superiores num breve período de mandato." (Castro et al., 1991, p.
101)
Em
Holmesland et al. (1989, p. 132 seq.), encontram-se evidências de que, apesar
da eleição, o diretor continua numa situação de dubiedade entre o poder do
Estado e as reivindicações da escola. Sente que tem obrigação para com o
Estado, mas, ao mesmo tempo, recebe pleitos de seus liderados que entram em
contradição com as determinações do sistema superior de autoridade, e se vê em
conflito pois não pode deixar de ouvir aqueles que o elegeram. Sente, por isso,
que era mais fácil a situação anterior em que recebia determinações superiores
e as impunha aos seus comandados, sem maiores dificuldades.
Essa
situação não deixa de ser reveladora de uma contradição originária do próprio
processo democrático de escolha do diretor. Mas parece que esta é precisamente
uma qualidade que se busca com a instituição da eleição: que as contradições
venham à tona e, no caso do diretor, que este seja, pelo menos em parte,
desarticulado do poder autoritário do Estado e se articule com os interesses da
escola.
Parece
que o diretor consegue perceber melhor, agora, sua situação contraditória pelo
fato de ser mais cobrado pelos que o elegeram. Este é um fato novo que não pode
ser menosprezado. À sua condição de responsável último pela escola e de
preposto do Estado no que tange ao cumprimento da lei e da ordem na instituição
escolar, soma-se agora seu novo papel de líder da escola, legitimado
democraticamente pelo voto de seus comandados, que exige dele maior apego aos
interesses do pessoal escolar e dos usuários, em contraposição ao poder do
Estado. Isso serviu para introduzir mudanças na conduta dos diretores eleitos
que passaram a ver com maior cuidado as solicitações de professores,
funcionários, alunos e pais. Um membro da diretoria do Fórum Paranaense em
Defesa da Escola Pública, Gratuita e Universal considera que, se a eleição não
mudou o papel do diretor, pelo menos o afetou, servindo para quebrar "a
marca autoritária presente na relação entre a direção da escola e o corpo
docente, discente etc." Considera ele que houve maior proximidade entre
diretor e professores bem como com funcionários, alunos e pais e cita como exemplo
a maior facilidade e possibilidade de existência dos grêmios estudantis, que
eram muito dificultados anteriormente e que passaram a ser vistos com maior
simpatia pela direção.
Uma
evidência da maior aproximação do diretor com o corpo docente foi sua mudança
de atitude com relação aos movimentos grevistas dos professores. Holmesland et
alii assim se referem à postura dos professores no Estado do Rio Grande do Sul:
"O sentimento
de não cooptação por parte dos diretores parece ser bastante forte e se tornou
mais evidente por ocasião das greves gerais de magistério. No Rio Grande do Sul
os diretores tomaram o partido dos professores e foram juntos à praça pública.
Por essas razões a hierarquia do sistema de ensino tenha, talvez, se sentido
ameaçada, percebendo a eleição como um fator desestruturante de sua posição de
poder." ( Holmesland et al., 1989, p. 164)
Antes,
era praxe o diretor nomeado encaminhar listas com os nomes dos professores em
greve sempre que solicitado pelas autoridades superiores. Com a eleição do
dirigente escolar, essa prática passou a ser questionada e negada pelo diretor,
que passou a reivindicar melhor tratamento dos governos aos movimentos
grevistas. Um exemplo típico dessa nova postura é relatado por Calaça,
referindo-se à greve no sistema municipal de ensino de Goiânia no início do
segundo semestre de 1983:
"Nesse confronto aberto, o prefeito contava apenas com o apoio de
um bloco pequeno de vereadores que exigia dele a demissão imediata dos
grevistas. Já os 83 diretores, na condição de eleitos pela comunidade escolar
posicionaram-se contra a decisão do prefeito Nion e defendiam o diálogo; alguns
vereadores e a Secretária da Educação cobravam do Prefeito as promessas de
palanque do PMDB e o pressionavam para resolver o impasse que ele próprio
criou." (Calaça, 1993, p. 74
Em
Santa Catarina, em 1987, conforme relatado por Leal & Silva, o diretores
assumem posição semelhante, ao emitirem o chamado "Manifesto dos Diretores
das Escolas Estaduais de Santa Catarina", resultante de assembléia
realizada em 4 de junho, em Florianópolis:
"Outro aspecto que a leitura do
Manifesto e da ata da assembléia revela é a posição de mediadores que os
diretores parecem assumir. Colocam-se numa clara posição de defesa dos
professores e de seus direitos, na medida em que consideram suas reivindicações
justas e legítimas e decidem não encaminhar, às instâncias superiores, as
listas com os nomes dos professores grevistas, solicitadas pelo governo. Ao
mesmo tempo, exercem pressão sobre o governo para que apresse os entendimentos
com as associações, cumpra a legislação em vigor e não puna os professores em
greve." (Leal & Silva, 1987, p. 71-72)
Todavia,
parece que a nova situação ainda não teve a qualidade de dotar o diretor e a
escola de um novo poder de barganha diante do próprio Estado que, habituado a
agir clientelisticamente no atendimento às unidades escolares, com a ausência
do clientelismo, se acomoda em simplesmente não dar ouvidos às solicitações do
diretor. De qualquer forma, o ter conseguido nova postura, pelo menos do
diretor, parece ser uma conquista do processo eletivo que não se deve
menosprezar. Além disso, há indícios de que os próprios diretores consideram a
nova situação mais positiva para a administração da escola.
É
interessante observar que a eleição de diretores não apenas traz novas
determinações ao papel do diretor, mas, em muitos casos, possibilita o acesso
ao cargo a um novo contingente de professores que, pelo critério da nomeação
clientelista, dificilmente viriam a se tornar dirigentes escolares. Ao mesmo
tempo, deve-se observar também que o antigo diretor era mais identificado com
as obrigações burocráticas e não tinha um passado de escolha livre por seus
comandados como estímulo para defender mecanismos democráticos como passa a ter
o diretor eleito.
Finalmente,
nota-se que, com a menor preocupação com as questões mais propriamente
burocráticas, ganha espaço na pauta de ocupações do diretor a atenção ao
pedagógico. A função de direção, anteriormente enredada em múltiplas atividades
destinadas a atender solicitações dos órgãos superiores pouco relacionadas com
as atividades-fim da escola, de repente se sente também pressionada a
dedicar-se com maior cuidado ao pedagógico que, afinal de contas, foi objeto de
todos os discursos nas campanhas para a eleição. O processo eletivo, dessa
forma, não apenas favorece o comprometimento com a razão de ser da escola, ou
seja, o educativo, por parte dos candidatos, mas também propicia a colocação em
evidência do pedagógico nas discussões que se fazem, por parte de todos, em
torno da questão diretiva. Como conseqüência, parece estar ganhando maior
relevo, tanto nas preocupações dos diretores eleitos, quanto nas exigências de
seus liderados, a atenção com as atividades pedagógicas da escola. Na pesquisa
de campo, isso transpareceu no depoimento do pessoal escolar bem como de outras
pessoas envolvidas nas experiências.
Essa
constatação é muito importante porque acena para uma nova orientação na prática
diretiva escolar que deixa de identificar-se com uma práxis
"burocratizada" no sentido que lhe dá Sánchez Vázquez (1977, p. 260
seq.), de prática reiterativa como um fim em si mesma, passando a constituir-se
em prática mediadora que, em seu caráter administrativo de "utilização
racional de recursos para a realização de fins determinados" (Paro, 1986,
p. 18), instrumentaliza a consecução dos objetivos educativos da instituição
escolar.
3 Democracia na escola
Um
ponto positivo a creditar à introdução das eleições como critério de escolha
dos dirigentes escolares é o interesse despertado nos vários sistemas onde o
processo se deu. Os vários depoimentos colhidos junto a pessoas ligadas
diretamente à escola ou a administração do sistema de ensino confirmam aquilo
que alguns estudos já haviam constatado com relação ao grande comparecimento
dos vários setores da escola nas eleições. (Zabot, 1984; Holmesland et al.,
1989; Mello & Silva, 1994)
A
grande participação das pessoas nas eleições ganha significado especial quando
associada à opinião daqueles que estiveram envolvidos com o processo. Tanto nas
entrevistas que fiz quanto nos estudos a respeito das eleições em vários
sistemas em que elas se deram, a maioria das pessoas tem uma opinião bastante
positiva sobre os benefícios trazidos pela adoção do novo critério de escolha.
Segundo um ex-assessor da Secretaria da Educação do Estado do Paraná, uma das
provas de que a eleição era um processo acertado é que, nesse Estado,
praticamente todas as prefeituras adotaram o processo eletivo como critério
para escolha do diretor.
Sobre
o fato de a participação dos vários setores nas decisões da escola ficarem
aquém do desejado, é importante atentar para as observações feitas por Calaça a
propósito das eleições em Goiânia. Após considerar que, "embora esteja a
escola elegendo seu diretor, já há oito anos, não se instituiu uma prática
efetiva de participação dos vários segmentos em suas decisões com a conseqüente
criação de canais que facilitassem esse processo", a autora pondera
entretanto que
"os vários segmentos, pelo fato mesmo de elegerem
o diretor, se sentem compelidos, e bem à vontade, a fazer interlocução com o
diretor. Comumente, as pessoas em conversa de 'pé de ouvido' elogiam ou
criticam a ação do diretor e ainda dão sugestões ou fazem reivindicações."
(Calaça, 1993, p. 210)
Essa
maior possibilidade de opinar, característica de um ambiente mais democrático,
acaba levando os sujeitos envolvidos na educação escolar a uma postura mais
participativa. A abertura para um diálogo mais franco certamente possibilita o
surgimento de conflitos de opiniões e interesses. O que não se deve, porém, é
tomar isso como algo negativo, mas considerar o que verdadeiramente se passa,
isto é: a eleição de diretores, ao supor um processo de discussão e de exame
crítico da realidade e dos interesses em jogo, está apenas fazendo vir à tona
conflitos que permaneciam latentes e que só se resolverão de modo positivo pelo
exercício do diálogo e da democracia.
O
que se observa também é que os conflitos que vêm à tona revelam uma maior
consciência política que começa a se desenvolver entre os participantes do
processo. Essa maior consciência política do pessoal escolar e dos usuários da
escola se manifesta quer em sua politização em termos de exigir mais do diretor
eleito e do Estado de modo geral, quer na preferência por soluções democráticas
para a seleção do diretor, não admitindo um retrocesso para a escolha pela via
da simples nomeação por critério político partidário. Tanto nos depoimentos dos
vários sujeitos envolvidos, quanto em estudos sobre o assunto (Calaça, 1993;
Heemann & Pucci, 1986) é notável a preferência das pessoas pela eleição
como critério de escolha dos diretores, sequer cogitando elas de outra
alternativa.
Com
relação aos professores, esses dados contrastam enormemente com os que foram
obtidos na cidade de São Paulo, em 1991, em consulta feita entre os professores
e especialistas da rede municipal, em que cerca de 81% dos docentes preferiram
a escolha pela via do concurso. A hipótese que se pode levantar - sujeita,
obviamente, a estudos mais aprofundados que lhe possam verificar a validade - é
a de que, em ambientes onde se faz presente a discussão política da democracia
e sua efetivação pela via do voto, os sujeitos estão mais propensos a concordar
com essa medida do que nos locais onde a existência do sistema de concursos com
aparência de justiça social tem eclipsado a discussão a respeito de sua própria
inadequação para atender as necessidades políticas de democracia na escola.
Tudo
isso remete à própria situação atual da escola pública básica. Sendo esta uma
questão de natureza eminentemente política, visto que quem detém o poder de
decidir, o Estado, nega-se a atender os interesses dos usuários que são os que
financiam a escola estatal por meio de seus impostos, nem sempre ela é assim
percebida pelos que trabalham na unidade escolar. Nos sistemas em que o diretor
é nomeado, seu compromisso político é com quem está no poder, porque foi quem o
nomeou; nos sistemas em que ele é concursado, seu compromisso é também com quem
está no poder, pois o concurso isolado não estabelece nenhum vínculo do diretor
com os usuários mas sim com o Estado que é quem o legitima pela Lei. Mas há uma
diferença importante: quando há a nomeação pura e simples, o aspecto político
fica à mostra, provocando, especialmente em períodos de democratização da
sociedade, descontentamento e mobilização dos prejudicados no sentido de
superar a situação; mas, nos casos em que há a ocorrência do concurso como
critério exclusivo de escolha, há o agravante de que o aspecto político fica escamoteado,
com maior tendência de acomodação e de crença na justificativa meramente
técnica para os problemas da escola.
Uma
consciência política mais desenvolvida e voltada para os interesses de todos na
escola, sem restringir-se ao corporativismo estreito ou às imposições muitas
vezes antieducativas do Estado, só poderá desenvolver-se num ambiente escolar
em que todos possam conviver como sujeitos, com direitos e deveres percebidos a
partir da discussão aberta de todas as questões que afetam a vida de todos na
escola. Embora a simples existência da eleição de diretores não tenha a
possibilidade de instituir, por si só, esse ambiente na escola, parece certo
que ela é uma prática que tem concorrido, de alguma forma, para isso. Segundo
Dourado (1990, p. 128), a partir da implementação das eleições, em Goiânia,
"professores, funcionários, pais e alunos começaram a discutir a escola
que tinham e, em alguns casos, a esboçar, ainda que preliminarmente, a escola
que queriam." O citado diretor do Fórum Paranaense em Defesa da Escola
Pública, Gratuita e Universal considera que o que houve de positivo com a
eleição foi "a abertura no debate sobre as questões educativas na escola,
envolvendo tanto a comunidade de dentro como a comunidade de fora."
Essa
maior discussão e maior participação, especialmente de pais e alunos, acaba
contribuindo para que se dê, na escola, o desejado controle democrático do
Estado por parte dos usuários de seus serviços. No estado de Mato Grosso do
Sul, onde a eleição de diretores associou-se à instalação dos colegiados
escolares, Paixão constata que
"algumas decisões tomadas também demonstraram mudanças na postura
tradicional de gestão da escola. As audiências solicitadas à Secretaria de
Educação passaram a ser feitas pelos colegiados e, em algumas ocasiões, em
conjunto com a Associação de Pais e Mestres (APM). Constata-se, também,
fortalecimento da ação colegiada à proporção que certas irregularidades
ocorridas na escola passaram a ser encaradas com maior seriedade, havendo
formalização de denúncias e instalação de sindicâncias para averiguações e
possíveis correções. Desta forma, o poder compartilhado tem inibido a prática
de ações irresponsáveis." (Paixão, 1994, p. 114)
A
circunstância de ser um colegiado e não o diretor isoladamente a levar suas
reivindicações aos escalões superiores da Secretaria de Educação significa
importante inversão na forma de pressão da escola sobre as autoridades
estatais, sobre cujos benefícios me referi em trabalho anterior ao relevar a
importância da gestão colegiada na busca de melhor apoio para a escola,
afirmando que é mais difícil dizer "não" ao pedido da escola,
"quando a reivindicação não for de uma pessoa, mas de um grupo, que
represente outros grupos e que esteja instrumentalizado pela conscientização
que sua própria organização propicia." (Paro, 1987, p. 53)
Certamente
o impacto das eleições sobre a democracia na escola ficou muito aquém do
esperado pelos mais otimistas que queriam, senão todos, pelo menos um grande
número de pessoas, entre pais, alunos, funcionários e professores, participando
intensamente das decisões da escola pública. O que se deu, na verdade, além da
ocorrência importantíssima de um novo clima de liberdade de expressão e de uma
maior consciência de direitos e deveres, foi que a participação mais ativa
ficou por conta de alguns poucos elementos mais persistentes em suas ações.
Mas, a lição importante a tirar parece ser precisamente a respeito da
importância de se contar com pessoas que se dispõem a participar
democraticamente, porque, mesmo contando com reduzido número de adeptos
atuantes, a prática democrática tem conseguido imprimir uma nova qualidade nos
rumos das ações desenvolvidas no interior da escola.
A
maneira de o indivíduo fazer prevalecer seus interesses em concordância com o respeito
aos direitos dos demais é, cada vez mais, sua intervenção nos destinos da
sociedade. Isto não se consegue apenas delegando as tomadas de decisão a
parlamentares e executivos distantes que, em grande medida, escapam ao controle
daqueles em nome dos quais o governo deve exercer-se. Por mais incipiente que
ainda seja, essa participação dos indivíduos na vida dos organismos civis da
sociedade apresenta pelo menos dois aspectos de fundamental importância para o
desenvolvimento da democracia. Por um lado, na medida em que se envolve com
outros sujeitos (individuais ou coletivos), o indivíduo exercita sua cidadania
"já que ser cidadão, e ser indivíduo, é algo que se aprende, e é algo
demarcado por expectativas de comportamentos singulares." (DaMatta, 1991,
p. 72) Por outro lado, ao intervir com sua opinião e explicitação de seus
interesses, procurando influir nas decisões que se tomam nos órgãos e
instâncias onde se realizam as atividades-fim do aparelho estatal (escolas,
atendimento de saúde, transportes etc.), os cidadãos contribuem para realizar o
controle
democrático do Estado, concorrendo para que este atue de acordo com os
interesses da população que o mantém.
Uma
análise consistente da realidade escolar brasileira mostra que a atual situação
de precariedade da escola pública só poderá ser superada a partir de forte
vontade política dos governantes, que se concretize na necessária atenção para
com o ensino e no provimento dos recursos imprescindíveis para a realização de
uma escola pública de qualidade. A esse respeito, a eleição de diretores não
tem o imediatismo que muitos desejariam. Seu papel é apenas o de contribuir
para que a população possa contar com um recurso que lhe possibilite exercer
alguma pressão sobre o Estado para que ele atue na direção desejada. Em
síntese, a razão determinante da opção pela eleição como mecanismo de seleção
de diretores é a crença de que, por um lado, pode-se escolher um profissional
que se articule com os interesses da escola, e por outro, o próprio método de
escolha condiciona, em certa medida, seu compromisso, não com o Estado, como
fazem as opções do concurso e da nomeação, mas com os servidores e usuários da
escola. Mas, por mais importante que seja esse comprometimento - porque deixa
aberta a possibilidade de o diretor, articulando-se com usuários e servidores,
pressionar o Estado - ele é apenas um recurso para melhorar a escola, não uma
certeza. Tudo dependerá do jogo de forças envolvidas, que não é função,
obviamente, apenas da eleição do diretor.
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Vitor Henrique Paro
R. Acuruá, 469 – Vila Romana
05053-000 São Paulo, SP
Telefax: 11 3023-4713, 3023-4168
Celular: 11 9179-3575
E-mail: vhparo@usp.br
* Trabalho
apresentado na 19ª Reunião Anual da ANPEd, realizada em Caxambu, MG, de 22 a
26/9/1996. Publicado em: Revista Brasileira de Estudos Pedagógicos,
Brasília, v. 77 , n. 186, p. 376-395, maio/ago, 1996 e em: Revista Portuguesa de Educação,
Braga, v. 10, n. 2, p. 139-151, 1997. Também publicado em PARO, Vitor Henrique.
Escritos
sobre educação. São Paulo: Xamã, 2001. p. 63-78.
** A pesquisa desenvolveu-se no Departamento de Administração Escolar e
Economia da Educação da Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo e
contou com apoio financeiro do CNPq.
Por Emanuelle Oliveira